Vivendo em Portugal tive a oportunidade de assistir duas encenações da obra-prima de Gil Vicente, possivelmente, o maior dramaturgo da língua portuguesa.

Falo do “Auto da Barca do inferno”, lançada em 1517 em terras lusas. Para um brasileiro, rever estas obra outrora aludida de forma distante nos bancos escolares, foi muito interessante.

Especialmente porque (nós, brasileiros) temos a nossa barca do inferno, lançada em 1955: “O auto da compadecida” do também brilhante dramaturgo paraibano Ariano Suassuna.

As duas obras se assemelham mais do que aparentam, apesar de separadas por um oceano geográfico e 400 anos de tempo solar.

Ambas tratam de um julgamento que parece à primeira vista positivista e rígido, mas que cede não às idiossincrasias das práticas humanas, mas ao que aspiramos como justiça cósmica (ou de Deus aos que assim creem).

Apesar de ambas (especialmente a obra de Vicente por ser mais antiga) ostentarem julgamentos e preconceitos típicos das suas eras, as duas obras conseguem superar o teste do tempo, possuindo valores intrínsecos que são cambiáveis para qualquer sociedade.

Egoísmo, avareza, frouxidão, cupidez, covardia e tirania são vícios impressos no DNA da História humana e por tal, retratados e retratáveis do Egito Antigo a Confúcio, da Babilônia à Sócrates, de Sêneca a Nieztsche, de Freud a Pinker.

Se Vicente pode ter passagens que incomodam os valores contemporâneos (como a forma com que trata os judeus), Ariano até hoje incomoda racistas ao tratar Deus/Jesus como um homem de pele escura. No fundo, a distância entre os textos é menor do parece e a hipocrisia em que miram e a ironia ondem moram é exatamente a mesma.

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