Os portugueses conhecem por geringonça a maioria absoluta artificial criada no parlamento lusitano em 2015. Para a constituir, o PS, partido de centro-esquerda e então vencedor das eleições legislativas, convidou os demais partidos de esquerda – porém mais distantes do centro – para governar consigo.

O arranjo durou e funcionou, afinal, Portugal precisava deixar para trás a crise de 2010/2011, que quase o transformou na Grécia Ibérica. Saneada a economia por meio de um plano criativo e bem recebido pela economia europeia a ponto da UE convidar seus idealizadores a contribuir com outros países, a dura e insensível austeridade ficou para trás, e Portugal começou a crescer firme na trajetória apelidada internacionalmente de capitalismo de sardinha.

Turismo, Serviços e Infraestrutura receberam investimentos públicos e privados e o país deslanchou a ponto de se tornar objeto de desejo de migração. Então, surgiu o primeiro grande desafio do governo do PS: a Pandemia. O governo se mostrou à altura, evitando polêmicas, agindo com sobriedade e criando com a sociedade portuguesa um pacto social sanitário. Deu certo: Portugal é o país mais vacinado da UE e já foi o mais imunizado do mundo. O número de óbitos é incomparavelmente menor que de países mais ricos da UE.

Mas eis que um dos aliados da geringonça achou que era pouco: o partido chamado Bloco Esquerda. Com uma atuação mais inflamada e mais distante do centro (nem sempre equivocada quanto ao mérito do que postula), o B.E retirou os votos para aprovar o orçamento proposto pelo PS em fins de 2021 e assim, implodiu a Geringonça, visto que sozinho, o partido do Primeiro Ministro não tinha votos para o aprovar.

Diante do impasse, o presidente português (do PSD, partido de centro-direita e concorrente do partido do primeiro ministro) se vê compelido a convocar novas eleições legislativas, que ocorreram ontem e marcaram o fim efetivo da Geringonça.

Contrariando as expectativas, o PS venceu seu concorrente PSD, mas não só isso: conseguiu demonstrar que o Bloco Esquerda foi o culpado pela intransigência ao não ceder nada para a aprovação do orçamento proposto pelo PS.

Essa percepção desidratou profundamente os partidos aliados da geringonça, e os eleitores centralizaram os votos no PS. Três fatores pesaram profundamente na decisão do eleitorado:

1- o receio de Portugal ficar paralisado sem uma maioria para governar e aprovar projetos essenciais ao país, bem como utilizar com inteligência os bilhões de euros que a U.E enviará até 2026;

2-o desejo de estabilidade e manutenção de um governo que se manteve o quanto possível distante de escândalos, polêmicas e investiu pesado no serviço público de saúde (como o bom desempenho na Pandemia está comprovando);

3-0 receio justificado dos portugueses em votarem na centro-direita (PSD) e assim, acabarem assistindo a extrema-direita ascender ao poder. Explico: o segundo partido que mais cresceu nas eleições foi o Chega, partido com conexões à família Bolsonaro e com plataforma política, nitidamente racista, anti UE, anti-migração e misógino.

Propostas?

Basicamente ser contra a corrupção e tudo que está aí.

Conclusão: Portugal pontua bem nos rankings de percepção de corrupção, não estando entre os países menos corruptos do mundo, mas estando muito longe dos medianos ou muito corruptos.

A plataforma do Chega, portanto, encontra dificuldade em emplacar, mas diante da dificuldade de Portugal em atingir o mesmo nível de riqueza dos seus vizinhos da Europa Ocidental, o voto no Chega acaba sendo um voto de protesto contra uma “pobreza” que os portugueses entendem poder ser superada com outro governo, mesmo sem saber exatamente como. O Chega conseguiu sua maior votação na história (quase 08%), representando aquele segmento do eleitorado que vota com o fígado, mas ficou totalmente distante de integrar o governo.

Por fim, essa dinâmica dupla prevaleceu: de um lado, a necessidade que o eleitor sentiu em desidratar os partidos aliados e conceder a maioria absoluta ao partido que governou decentemente nos últimos seis anos, e do outro lado, o medo da extrema-direita ganhar musculatura como vem ocorrendo na Holanda, Áustria, Espanha e Itália ou até pior: dela se tornar governo como se sucedeu na Rússia, Polônia, Hungria, EUA (Trump) e Brasil (Bolsonaro).

E assim acabou a Geringonça, democraticamente, em eleições sóbrias, justas e pelas mãos dos nossos irmãos portugueses.

PS. Não se notaram atos antidemocráticos, promessa de golpes ou desfiles militares e tampouco alegação de fraudes nas urnas pelos derrotados. Os seguidores e amigos brasileiros sabem do que estou falando.