Divulgada como a série mais assistida da história no Netflix, e surfando sobre a boa (e merecida) reputação do oscarizado “O parasita”, Round 6 tem sido a cereja do bolo da produção cinematográfica da Coreia do Sul (que recomendo muito!).

Mas, afinal, por que a série impacta tanto, assim como outras películas como o espanhol “O poço”?

No Brasil recebemos informações bastante incompletas sobre a Coreia do Sul: sim, trata-se de um case de salto qualitativo e quantitativo desde os anos 60, quando os sul coreanos eram mais miseráveis que vários países sul americanos e estavam em posição similar a algumas nações africanas.

Hoje, a Coreia do Sul tem uma das dez economias mais sólidas do mundo e ao contrário da China, ostenta uma renda per capta excelente. Também possui notável expectativa de vida e IDH muito decente.

Mas, o fato é que se a série surgiu é porque pulsa no seio da sociedade sul coreana um grande desconforto social. E de onde ele provém? São vários fatores. A demografia explica alguns deles, mas não todos. Baixo crescimento econômico em comparação com as décadas anteriores, estilo de vida ultra consumista e competitivo e provavelmente o fator que mais pesa: baixo índice de mobilidade social.

Esse ponto chama muito a atenção. Se olharmos ao nível de desigualdade social Sul coreano (medido mundialmente pelo fator GINI que está no carrossel de fotos), o leitor notará que enquanto o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo, a Coreia do Sul é apenas o top 102.

O que explica tamanha revolta dos sul coreanos?

Novamente, a baixa mobilidade social.

Os sul coreanos, voluntaria ou involuntariamente instituíram um tipo de sociedade de mercado onde a posição em que você nasce praticamente define onde e quanto estudará, assim como, quanto ganhará.

Como os idealizadores dos jogos cruéis da série dizem, o sistema nas ruas é mais perverso e injusto que o dos jogos. A reificação dos corpos (utilização dos corpos humanos como meio e não como fim) nas ruas não é diferente da dos jogos, com a diferença que nos jogos o prêmio (difícil de obter) é muito maior.

O leitor poderia objetar que a chance de obter o prêmio nas ruas seria maior? Seria mesmo? Certamente que não. Na série são 456 jogadores tentando obter o salto de andar sócio-econômico, ao passo que alguns deles podem mesmo lograr o salto e a chance existe de fato. Nas ruas, as chances existem de fato?

O que dizer da desigualdade de partida durante a competição. O elemento aleatório nos jogos da série é muito mais próximo do conceito de sorte que uma condição pré-determinada como o bairro ou família em que nascemos nas ruas brasileiras ou sul coreanas.

E infelizmente, essa solidificação da mobilidade social está se tornando uma tendência mundial em países desiguais. Os EUA e Reino Unido, berços do liberalismo e da sociedade de mercado são hoje países brutalmente desiguais, se situando sempre entre top 40 a 50 no ranking do índice GINI, e as suas taxas de mobilidade social são inferiores a de países tidos como igualitários (mas teoricamente com menores oportunidades de enriquecimento) como a Dinamarca.

Isso nos obriga a nos perguntarmos o que há de errado com a sociedade brasileira (e de outras partes do mundo) que até agora não deram vazão ao seus round 06, se constituindo em sociedades muito mais desiguais que a sul coreana?

De alguma forma, a sociedade sul coreana conseguiu enxergar a si mesma com maior precisão e deixar de naturalizar a barbárie provocada pela imposição de instituições políticas e de mercado que não tem nada de naturais.

De algum modo, os sul coreanos lograram sair do ensimesmamento e tal como Byung Chul Han (pensador coreano radicado na Alemanha), enxergaram que a sociedade de mercado brutalizada pelo darwinismo social (e competição desenfreada) não é um estado natural e se reveste de tanta ideologia quanto o socialismo.

Capitalismo e Socialismo, são ambos, produtos e consequências de ideologias.

O fato do Brasil não ter produzindo ainda o seu round 06 é um fator claro e indicativo de que a nossa sociedade está muito doente, certamente muito mais que a civilização sul coreana, o que não deixa de ser mórbido e um claro sinal de que temos nos desumanizado.