Curiosidade número dois: A jangada de pedra

Lançado em 1986, ano exato da entrada da Espanha e Portugal na então Comunidade Europeia (que viria a se tornar a atual UE), a obra mescla surrealismo, crítica política, road story, subversão da ciência das causas, correlações e mera especulações enquanto faz piada / chiste com a identidade Ibérica.

O plot parte de uma fissura geológica nos Pirineus (cadeia de montanhas que separa a França da Espanha), o que fratura o continente Europeu, lançando toda a península Ibérica a vagar como ilha pelo oceano Atlântico na direção do arquipélago dos Açores (pertencente a Portugal).

Rapidamente se instala a certeza de que se estão a vagar, e se Espanha e Portugal definitivamente nunca foram muito europeus, agora com a fratura é que deixam completamente de sê-lo. Turistas congestionam aeroportos para tentar “fugir” da península à deriva antes que esta se afaste demais ou o espaço aéreo seja fechado. Famílias ricas cogitam abandonar Portugal, os governos espanhol e português respectivamente, ora se alinham, ora se acusam. Cientistas e charlatães tentam descobrir a causa da fissura, que pode tanto ser natural como se especula surrealisticamente se não decorre de atos aparentemente tolos como um rapaz / gajo ter passado uma varinha de negrilho no chão, bem no local da fratura.

Em dado momento, 4 personagens se juntam em uma roadtrip pela península e a obra assume uma escrita cada vez mais insana em matéria especulativa, mas mais lúcida em matéria de crítica política.

O texto ainda não é o do SARAMAGO maduro de Ensaio sobre a Cegueira (de uma década posterior), mas todos os elementos da genialidade do autor lusitano já estão presentes: o pessimismo, o humor cáustico, a agudez na crítica e a prosa FLUÍDA e com pontuação atípica.

Mais brilhante ainda é que SARAMAGO escreve a obra antes da consumação do ingresso de Espanha e Portugal ao organismo político que se tornaria a UE, publica-a no ano em que isto se dá e de certa maneira, antecipa metaforicamente muitas das críticas que ibéricos e UE se fariam (e ainda se fazem) reciprocamente. #saramago #surrealism