A era unipolar (iniciada com a queda do muro de Berlim) terminou hoje com os ataques frontais de Moscou a Kiev, dando lugar a uma nova ordem, desta vez, Multipolar. A escalada bélica e retórica russa não seria possível sem um arranjo econômico e diplomático com Pequim.

Fica cada vez mais provável o acordo entre China e Rússia, onde Putin se sentiu confiante para atacar Kiev, ciente de que eventuais sanções econômicas da UE e EUA, serão amortecidas pelo comércio com os chineses.

Há indícios de que até mesmo é possível aos russos suspender o fornecimento de gás aos alemães e passar a fornecer aos chineses, obrigando a UE a buscar suprimentos energéticos com o Qatar.

Sozinha, a Rússia, país com população similar a do México e PIB compatível ao brasileiro, não é uma ameaça a Otan ou aos EUA.

Mas a parceria sinorussa já eleva a capacidade competitiva de ambas as nações e coloca totalmente em xeque a supremacia norte americana.

Rússia e China são respectivamente os dois países mais extensos do mundo, sendo a China o maior parque industrial e a Rússia a maior reserva energética do planeta.

Tendo acesso ao mercado chinês, com mais de um bilhão de consumidores e fatia de mais de quatrocentos milhões de pessoas que saiu da miséria para viver e consumir com dignidade, os russos obtém acesso a um mercado maior que a soma de UE + EUA em termos populacionais.

Mas e a China? O que ganha com a parceria?

A China ganha o que tem ganhado com todas as parcerias que têm buscado: estabilidade diplomática, maior tranquilidade nas suas fronteiras, suprimento energético vasto e de boa qualidade, e de quebra, apoio político para endurecer as medidas contra eventual tentativa de maior autonomia em Hong Kong e possível retomada de Taiwan.

Sabe-se que os chineses e americanos estão travando batalha política, com ambas nações tentando colonizar o parlamento de Hong Kong, que hoje é um território com autonomia, mas pertence à China, embora com liberdades impossíveis a outras províncias chinesas.

Já Taiwan, segundo acusam os chineses, estaria se armando com suprimentos militares via EUA, que aportou número inédito de portas-aviões no oceano Índico, numa tentativa de teatro de forças em uma área de influência claramente chinesa.

Não dá para se prever se essa parceria China / Rússia é sustentável a longo prazo: historicamente, são povos que desconfiam de si, e os chineses enxergam os russos como ocidentais como nós, a despeito dos próprios russos não se contemplarem exatamente assim.

Mas não é só.

Ao longos dos séculos, a Rússia sempre se forjou um império, uma nação de traços guerreiros, muito mais próxima do passado japonês de invasões e expansionismo que da estabilidade territorial chinesa. Os chineses, ao revés, são marcados por um modelo histórico não militarista ou colonial.

O passado russo é marcado por exércitos marchando, enquanto o passado (e presente chinês) é caracterizado pela mercancia. Se a Rússia esteve mais para Esparta, a China sempre esteve mais para a Fenícia.

Esse marcha em rota de colisão entre Rússia / China x EUA claramente está elevando a agressividade no trato diplomático, mas isso não significa que esse tom retórico vá necessariamente transbordar para o campo militar ou uma Nova Guerra Fria.

O passado nunca se repete de forma idêntica, e é preciso se recordar que no auge da Guerra Fria entre EUA x URSS, o volume de comércio entre as duas potências equivalia a 01% da mercancia entre China e EUA atualmente.

Ambos países teriam muito a perder.

Assim, o mais provável é que leve algum tempo para todos os atores dessa nova geopolítica se acostumem com esse novo cenário, mais flexível, imprevisível e possivelmente mais repleto de mudanças de lado, e onde imperará no lugar da antiga hegemonia americana uma multipolaridade de forças.