As cidades criaram o anonimato visto que passamos a conviver e colaborar aos milhares e depois aos milhões, situação que inexistia quando vivíamos em aldeias, cujas alianças se lastreavam na consanguinidade, parentesco, proximidade ou no mínimo, fortíssimos laços de convivência e conhecimento.

O anonimato mudou bruscamente a nossa relação com a vida e com a morte: repentinamente, passamos a viver em ambientes em que a maioria das pessoas não se importa realmente conosco (e não necessariamente por maldade, mas simplesmente porque é impossível ao cérebro humano – ao menos ainda – se relacionar de forma sólida com mais de uma centena de pessoas).

O anonimato trouxe, portanto, duas consequências antagônicas: de um lado, propiciou a colaboração entre milhares de pessoas com propósitos semelhantes, incrementando nossas condições materiais, melhorando-as, sem dúvida e permitindo a espécie humana dominar o planeta e moldá-lo à sua maneira (o que estamos descobrindo agora, não ser cem por cento positivo). Por outro lado, o anonimato criou uma sensação inédita de desamparo durante a vida e especialmente, após a morte.

Qual é a garantia que teremos de sermos lembrados, evocados, dignificados por aqueles que viverão após a nossa partida em uma sociedade onde somos um grão de poeira insignificante?

A chance de ser lembrado por muito tempo é dádiva para poucos, o que lança a humanidade em um a competição para aparecer e deixar a sua marca: todo indivíduo tenta deixar seus sulcos na história para que mais pessoas o tenham em conta. Esse anseio não deixa de ser um produto cultural humano tentando trapacear nossa impermanência biológica e é certo que tivemos algum êxito nesse sentido.

A eternidade de um indíviduo era algo fugaz e que poderia ser transmitida apenas oralmente. Salvo raras exceções, em poucas décadas ou um século quando muito, nossa existência estava soterrada pelo pó do avançar do tempo. A escrita e o registro de eventos, desejos, atos e biografias mudou um pouco isso, mas o papel é algo orgânico e quase tão perene quanto a nossa carne. A era virtual mudou essa dinâmica. Empunhando smarthphones, webcams e entre outros instrumentos, temos à nossa disposição aparato inédito para registrar cada passo que damos.

Biografias serão rascunhadas no futuro a partir de registros dos próprios biografados. Se hoje, posso saber quando muito que meu tataravô migrou do norte da Itália ao Brasil no final do séc. XIX, no futuro, poderia saber quantas namoradas ele teve, quais festas frequentou, em quem votou, se apoiou a revolução constitucionalista ou não, e de quebra, até se gostava de açaí (claro que é brincadeira). Temos inédita capacidade de registrar, transmitir e armazenar dados, correto?

Sim.

A questão é saber se teremos foco, tempo e desejo em garimpar estes dados em uma era que não vive no presente de minutos, mas vive no instante de átimos cronológicos. Basta um post, uma notícia vinda em um link, uma sugestão matreira do algoritmo e pronto: perdemos um interesse, ganhamos outro que será escanteado poucos instantes depois por um novo. Temos condições de saber muito, acessar tudo, mas ao mesmo tempo não conseguimos nos debruçar sobre o mínimo.

Como uma maldição prometeica sabemos muito sobre tudo e pouco sobre o todo e a cada vez que a tecnologia enseja um salto na capacidade de manipular os dados, mais o sapiens se torna insignificante perante essa galáxia de linguagem binária. Fica cada vez mais claro que a inteligência que estamos criando não necessariamente nos deixará sapiens mais inteligentes, porque o corpo humano não evoluiu para ser submetido a essa tempestade de bits, mas sim, para ter poucos e cruciais estímulos.

Temos – a médio prazo – duas saídas que não são excludentes, mas suspeito que as trataremos como não mescláveis:

– investir mais em sabedoria, nos voltando às culturas milenares que lapidam nossas mentes e consciência, adensando a nossa espiritualidade (palavras de um agnóstico), para proteger as nossas mentes dessa chuva de estímulos contrários aos nossos institutos e configurações evolutivas básicas;

Ou

– nos voltamos à revolução biológica, terapia, manipulação genética e interface do sapiens com tecnologias virtuais, como tem sugerido Jamie Metzl (conferir o livro Hackeando Darwin);

Não sei dizer qual é a melhor solução, mas aposto que a humanidade se voltará à segunda alternativa, o que pode ser mais fascinante, mas ao mesmo tempo, assustador e com resultados imprevisíveis. O ser humano não teve sabedoria sequer para administrar os seus primeiros porretes e clavas, o que nos faz pensar, que a nossa curva de aprendizado de espiritualidade e sabedoria deveria ser proporcional ao nosso progresso tecnológico, mas sabemos que isso está longe de acontecer…