Se o fascismo morreu… deixou bisnetos?

Ao leitor que acompanhou as duas primeiras colunas, informei que com o lançamento de meu terceiro livro, Fascismo Pandêmico: como uma ideologia de ódio viraliza?, farei breves reflexões em formato de colunas nas próximas semanas. O tema é espinhoso: adversários políticos – sem nenhum amor à precisão de conceitos filosóficos e políticos – têm atirado sobre si epítetos como fascista, comunista entre outros.

No primeiro texto, abordamos como a era contemporânea abusa dos termos comunismo, fascismo etc, de forma que invariavelmente corrompem os conceitos que tais vocábulos representam. A sabedoria popular, contudo, sabe que nenhum cão miará se for chamado de gato. No segundo texto, demonstramos como embora seja nacionalista e xenofóbico, o movimento fascista se alimenta de sentimento ínsito à alma humana: o ódio e para odiar, basta estar vivo.

No texto de hoje examinaremos o cadáver do fascismo: será que o defunto realmente está cem por cento morto? A leitura da história é sempre algo árduo: como o observador sempre contamina o objeto observado, na história a versão que tem mais chances de prevalecer é sempre a versão mais propalada e quem detém mais chances de propalá-la, claro, é o vencedor.

Por isso, com a derrota do Eixo na Segunda Guerra Mundial, o arrasamento das nações fascistas com invasões, bombardeios e lançamento até de bombas atômicas, e depois, com a “colonização” financeira e ideológica destas nações pelos aliados nas décadas seguintes, o capitalismo e o comunismo suplantaram o fascismo como ideologia dominante.

Nenhum regime confessadamente fascista parou em pé após a Segunda Grande Guerra e mesmo após o julgamento de Nuremberg, fascistas foram caçados ao redor do mundo, seja por instituições políticas e públicas, seja por genuína morte civil, isto é, os fascistas se tornaram leprosos do ponto de vista civil e comercial. Ninguém em sã consciência desejaria ter o nome associado ao movimento inegavelmente derrotado.

Este é um ponto central de nossa percepção: o fascismo talvez seja atualmente defenestrado por grande parte das pessoas não pelo que tem de horrendo e odioso, mas por ter sido derrotado. No seio do pensamento nacionalista, tribalista, xenofóbico e de mentalidade orgulhosamente armamentista como é a mentalidade fascista, não é o teor do fascismo que o torna indigno, mas ter sido derrotado pela aliança das forças liberais e socialistas.

Mas então o fascismo morreu mesmo? O defunto não respira, não pisca os olhos nem responde a estímulos? Quem dera. Podemos afirmar hoje que o fascismo confesso, aquele fascismo explícito, declarado até com orgulho e que legitimou de forma vergonhosa diversos governos, esse sim, morreu. Mas não morreu o fascismo como elemento ínsito à alma humana, como política individual e como habitáculo de pensamentos em geral, inconfessáveis na sera pública atual (embora uma minoria o faça ainda).

O ódio nasce do ressentimento e se há algo que grassa no mundo contemporâneo, é o ressentimento: dos velhos com os jovens, dos jovens com os velhos, dos héteros com os homos, dos brancos com os negros, dos homens com as mulheres e por aí não para. Nos últimos cem anos avançamos em matéria humanitária, mas não o suficiente para dizer que erradicamos os elementos fascistoides presentes na alma humana. Neste século de avanços, tivemos retrocessos e quando não tivemos retrocessos, observamos ressentimento. Neste borbulhante caldo cultural, parte considerável da população sentiu-se rebaixada, não por tê-lo sido, mas simplesmente pela ascensão de minorias.

São pessoas cujo credo se assenta que a pluralidade não é desejável e que a sociedade ideal não é a de igualdade de direitos, mas a da igualdade entre os que considera merecedores e similares a si.

Se a iconografia fascista evoca as fasces (feixe de varas), qualquer diferença será uma rebarba a ser vítima da grosa. A diferença – para o fascista – jamais pode ser premiada com a igualdade de Direitos. Aquele que destoa, que diverge, que discorda deve ser admoestado e se insistir, passar pela solução da vara. Enquanto lustra seu porrete o fascista se apresentará como democrático e “conservador”. Fará questão de se fazer confundir com estes, embora não guarde nenhuma similitude com o movimento conservador, que é cético por natureza e contra qualquer forma de reengenharia social.

Enquanto existir ódio aos montes dentro e uma sociedade de massas, altamente despolitizada e suscetível a desinformação, o fascismo persistirá. Certamente, menos virulento, agressivo e letal que o seu bisavô uniformizado, mas ainda assim, fascista. Na próxima coluna falaremos do fascismo inconsciente e do fascismo tímido, que são as formas prevalecentes em nossa era.

Até breve.