Há certamente uma íntima relação entre as consequências da pandemia e é provável que exista uma relação entre o surgimento da pandemia e as cidades. Explico: o ser humano se urbanizou apenas há 0,30% desde que existe o gênero homo, isto é, durante 99,70% do tempo em que existimos, vivemos fora dos ambientes urbanos, que sequer existiam. O epicentro das doenças ocorreu com a adoção da agropecuária que permitiu um tráfego descomunal de microorganismos entre os seres humanos e as espécies que eram domesticadas, em processo ocorrido cerca de 08 a 10 mil anos atrás. Esse é um fenômeno recente do ponto de vista geológico, biológico e até mesmo, histórico, que marca a passagem do sapiens caçador coletor para o sapiens sedentário.

Essa convivência intensa entre os seres humanos e seus animais domesticados (à época, ainda meramente domesticáveis), com ênfase na Europa e Ásia, criou uma pressão de seleção natural sobre os indivíduos e famílias mais resistentes e estes por sua vez, espalharam os gérmens com a chegada de Colombo na América, com a colonização africana e da Oceania, conforme estudos amplamente documentados pelos biólogos Jared Diamond e Edward Wilson. Ocorrido o notório genocídio dos nativos da América por conta destes patógenos trazidos da Eurásia (em alguns locais, simplesmente 90% da população fora dizimada por germes), desde então ocorreu uma certa estabilização epidêmica. Mas esta estabilização pode estar sendo revertida por um novo tipo de contato humano com patógenos: os fenômenos de avanço dos meios urbanos para as áreas antes intocadas, permitindo o contato com criaturas silvestres, cumulando esse processo com a conurbação das cidades e adoção indiscriminada de modelos urbanos sem condições sanitárias.

A partir do século XX, milhares de pequenas cidades se tornaram médias, outras milhares de cidades médias se tornaram grandes e centenas de grandes cidades se tornaram metrópoles. Pior: criamos as megalópoles, que são nada mais nada menos que monstros urbanos, cidades praticamente incontroláveis e certamente impossíveis de serem administradas. Com essa dinâmica recente, as pandemias apresentaram seu primeiro cartão de visitas já no começo do século XX: a gripe espanhola, que levou embora cerca de 50 milhões de almas humanas.

Dentro deste fenômeno de crescimento não só vertical, mas sobretudo horizontal das cidades, surge um novo fenômeno, que só ocorrera quando da sedentarização do sapiens: alguns animais que jamais conviviam com seres humanos ou animais domesticados para consumo estão tendo contato com criaturas silvestres que vivem nestas áreas, outrora intocadas. Alguns destes animais, ostentam um sistema imunológico apto a repelir fortes infecções viróticas mas isso não impede que as transmitam. Pior: alguns destes animais vivem por décadas, têm grande interação com outros animais (consumidos pelos seres humanos) e em suas vidas, cobrem áreas de raios ou diâmetros de centenas de quilômetros.

Hoje, entre uma megalópole e uma área de preservação ambiental, você não terá centenas de quilômetros, mas sim, uns poucos, isso quando as áreas de preservação já não foram engolfadas pelo oceano urbano. É uma combinação pouco estudada, porque as megalópoles são algo recente. As grandes cidades da antiguidade eram pouco populosas se comparadas com as nossas: as grandes urbes gregas não tinham meio milhão de habitantes e Roma, em seu apogeu, e mesmo assim de forma precária, contou um milhão de pessoas.

Não nos esqueçamos que além da questão do avanço das cidades sobre áreas de preservação, temos que analisar como são as nossas cidades: grande parte não passa de um aglomerado urbano, com infraestrutura precária e doentiamente desiguais. Não é coincidência que entre os top 04 do ranking do corona vírus não estejam as cidades com maior densidade demográfica necessariamente, mas sim, as nações onde a desigualdade se agudiza: EUA, Brasil, Rússia e Índia.

Precisamos urgentemente estudar formas de lapidar nossos modelos urbanos e sócio econômicos ou corremos o risco de ver a nossa espécie viver em cidades assoladas por pandemias, o que de certa forma faria o corona vírus ser apenas o primeiro de nossos problemas futuros.

O modelo urbano adotado não deve ser desprezado, pois embora estejamos cada vez mais virtualizados, a vida ainda se passa nos espaços físicos.

Por ALEXANDRE GOSSN

Escritor, Advogado, Mestre em Direito Ambiental, Pós-Graduando em Ética & Filosofia, autor de Cidadelas & Muros, Progressofobia e Fascismo Pandêmico.