A liberdade de expressão é um direito derivado do próprio direito à liberdade, conquistado às duras penas pela maior parte das democracias ocidentais desde a Guerra da Independência dos EUA (1.776) e a Revolução Francesa (1.789). Não entraremos no debate se a liberdade provém de outras fontes (já adiantamos que pensamos que sim, visto que alguns países a conquistaram sem derramar tanto sangue), pois o tema é outro.

Edificamos sobre o postulado da liberdade uma plêiade de outros direitos: o direito de se informar e ser informado, a publicidade jornalística e suas primas; a artística, a comercial e a científica. Até mesmo o direito de associação deve ser mencionado por certamente estar em uma intersecção com o direito à liberdade e à expressão. Ao mesmo tempo que nos últimos séculos temos palmilhado em busca da concretização ideal do direito de liberdade, nossa sociedade tem se mantido atenta às construções sócio-históricas que podem perpetuar injustiças.

Se a liberdade é um dos anseios, a igualdade e a dignidade humana também são. Não devemos nos sentir a última bolacha do pacote em termos geracionais, como o pináculo do humanismo, se há poucas décadas havia apartheid declarado na África do Sul e algumas décadas antes nos EUA, só para ficar nos exemplos óbvios.

A repulsa pelo racismo, machismo estrutural, misoginia, homofobia, xenofobia, entre outros, tem crescido e se propagado na capilaridade das redes da infosfera, que como bem cunhou o brilhante autor italiano Luciano Floridi, tem se tornado mais relevante que o próprio ambiente físico como espaço para interação da comunidade.

Floridi é cirúrgico em sua observação: a infosfera nasce pelas mãos do ambiente físico e se molda a ele durante determinado tempo, mas tal qual a criatura que ganha vida e sentido próprios, a infosfera assume as rédeas do seu destino e inverte o processo: passa a moldar o ambiente físico e as relações que nascem dele.

É neste contexto que surge a cultura do cancelamento: primeiro, como grito dos ressentidos, esquálidos de poder político e econômico, a fusão de milhões de esquecidos que demandam de forma justa sua reinserção no debate público. São pessoas que sem o advento da internet poderiam no máximo formar enormes passeatas sem efeitos práticos e a curto prazo, mas isso mudou. Como tudo que se passa no ambiente virtual passou a ditar os rumos do mundo físico, uma janela de oportunidade inédita foi aberta: pessoas hipossuficientes, minorias, gente que almejam ambientes mais dignos e seguros, todos passaram a se movimentar de forma impressionantemente organizada.

Como a infosfera raramente garante o direito ao esquecimento, pois as novas tecnologias transformam praticamente todo cidadão em cineasta / jornalista / documentarista, e como a própria existência das redes torna atrativo para a maioria se expor, começam a borbulhar posts, vídeos, tuítes etc. em profusão.

Em um ambiente como esse, é impossível não ocorrer um striptease comportamental profundo de diversas figuras, especialmente as celebridades, com os reis e rainhas nus, fica claro que muitos desta nova realeza pós-moderna ostentam alguns comportamentos no mínimo anacrônicos, para ser bem benevolente. O caldeirão cultural, social e tecnológico está pronto para a ebulição da cultura do cancelamento.

Repentinamente, celebridades são “CANCELADAS”. Correntes colossais repudiam comentários infelizes, vídeos com flagrantes, posts novos ou antigos e pasmem, até a falta deles (na cultura do cancelamento, a omissão sobre uma posição determinada pode bastar para alguém ser “cancelado”). O objetivo inicial era claro: uma descomunal vaia eletrônica ao indivíduo que fez uma colocação preconceituosa de certa maneira.

Mas, a coisa tomou um rumo mais intenso: repentinamente, qualquer escorregada ou uma simples opinião de alguém socialmente desajustado podem desencadear o “cancelamento”. Os canceladores têm ido muito além da reprimenda, tentam fazer o alvo perder seu emprego, não ser mais aceito em diversos meios sociais e midiáticos, impondo penas muito severas – grande similitude com a morte civil aplicada na antiguidade (ostracismo) e o apedrejamento (ainda praticado em certas partes do mundo).

O cancelamento como mera vaia que ecoa acaba por privar que algum político, esportista ou celebridade tente evoluir ou simplesmente se abstenha de comentários que agridem. A vaia – já professava Nelson Rodrigues – é mais benéfica que a adulação, e certamente humaniza mais que o aplauso incessante. Mas, ela não condena ninguém ao isolamento, tampouco torna alguém um leproso putrefato a qual todos querem evitar. Nesse sentido, há uma linha que precisa ser traçada no chão para que de vaia eletrônica, não passemos a um sistemático apedrejamento alheio. Especialmente, quando o que se julga um deslize foi o direito ao silêncio que todos temos ou a expressão de uma opinião científica.

A ciência não pode ser acusada de racismo se aponta, por exemplo, fatos objetivos: asiáticos tem maior incidência de câncer de garganta, caucasianos maior propensão a doenças esqueléticas e musculares, indígenas menor imunidade a patógenos eurasianos, africanos maior incidência de glaucoma e idosos sofrem mais com artrite. Estes são fatos objetivos, sem qualquer julgamento moral ou subjetivo.

Se decidirmos amordaçar a ciência em prol de não ouvirmos fatos e evidências que nos desagradem, daremos uma guinada na busca pelo direito de liberdade e rumando a um futuro distópico, onde falar pode levar à morte e calar pode ser nossa única opção. Aristóteles dizia que a virtude é um ponto meridiano entre dois vícios, assim, chegou o momento de equalizarmos a cultura do cancelamento para que, ao invés de remédio contra os intolerantes, ela não se torne o seu próprio veneno.